Mãos adormecidas


Se é o tempo que nos mata, é dele também nossas melhores lembranças.
As melhores brincadeiras da infância, a perda daquele animal de estimação insubstituível, a falta daquele avô de força invejável.
O melhor sorriso é o primeiro, o melhor beijo é o último, a melhor fase é o agora.
Mas a conduta é diária, o riso constante e o caráter imutável.
Nossa pele exala o cheiro dos sonhos pelos poros, mas as mãos, adormecidas pelo tempo, passam a idade que temos e os feitos que fizemos. O bolo, a decoração da festa de aniversário do filho, o carinho no rosto do pai, a digitação do trabalho da faculdade.
Noites mal dormidas, palavras mal ditas, pessoas mal pensadas.
No entanto, noites com os amigos, palavras de amor, pessoas especiais.
Tudo com seus dois lados, nada sem ele. Sentimento, ardor, paixão, felicidade.
A necessidade da companhia, a ansiedade da presença, a inesgotável sensação de que poderíamos ter feito melhor.
Cobranças, responsabilidades, falta daquilo que pensamos ter tanto: tempo.
Tempo real, tempo ilusório. O passar das horas no relógio e as rugas na frente do espelho.
O rostinho de boneca, antes visto em nossas fotos, torna-se o desejo na filha com aquele cara incomparável. E que o cara seja mesmo o tal, senão, cara quebrada de novo. E claro, o ciclo se reinicia, como tudo deve ser.
Não morremos de decepção, não morremos de sono, nem de amor. Mas morremos de amargura, de rancor.
Que guardemos somente aquilo que vale a pena, porque o armário é pequeno, e nossa mente tem prazo de validade.