Ontem eu me achava uma farsa. Fake, como uma notícia de whatsapp ou um bolo de casamento com três andares.
Hoje me acho uma colcha de retalhos. Não da música. Daquelas como a da minha avó, feita de dezenas de pedacinhos de tecido.
A diferença é que meus pedaços não são de algodão, linho, viscose. São de tantas e tantas vezes que me desfiz para depois me refazer. Assim, colando com a cola de um dia após o outro.
A construção através da desconstrução. O alicerce feito de caos.
Em cada dia desses dias de quarentena voltei ao que fez cada um desses pedaços. Visitei com nostalgia, saudade, amor e dor, lugares, cheiros, pessoas. Visitei um eu tão perdido, mas tão cheio de si. Um eu que jurava ter superado quando só havia escondido em algum lugar bem fundo e deixado pra lá. O problema é que o "pra lá" pode ser mais perto do que a gente imagina.
Minha avó tinha um guarda roupas de madeira maciça. Naquela época era difícil usar mdp ou mdf. Tudo era consistente, até os móveis. Madeira escura, seis portas, gavetas e uma penteadeira com espelho interno. Lá ela guardava talco, perfume, escova de cabelo e porta jóias. Esse, de porcelana, era também o "porta pó de arroz". Tinha dentro uma almofadinha e uma espécie de pó compacto para o rosto. Eu adorava abrir o guarda roupa pra pegá-lo. Não usava muito, ela não deixava, mas gostava de passar um pouquinho toda vez que ia visitá-la. Sempre fui vaidosa.
Quando o pó acabou, minha avó já não se importava com maquiagem. Estava com muita idade, então embaixo da almofadinha ela guardava as jóias que restaram. Um anel de ouro com uma pedra de rubi, uma correntinha, entre outras coisas que não lembro. O fato é que aquele porta jóias continuava ali, sempre e sempre, até o dia em que nada mais continuou. Então, eu o quis.
Hoje ele está aqui, no meu guarda roupas. Não tem mais a almofadinha, nem o pó. Não tem mais as mãos da minha avó abrindo a porta de madeira barulhenta. Mas eu o tenho.
Abro, olho, lembro. Lembro do cheiro da minha avó, das roupas penduradas no lado esquerdo, da correntinha com a medalha que usava em cima do vestido verde escuro em dias de festa ou médico, das mãos sempre geladas, dos óculos cor de rosa. Eu só consigo agradecer esse pedaço de mim que se fundiu ao todo, tecendo com amor e oração espanhola mais uma parte tão importante da colcha da minha vida. Minha brava e doce Canita.