Prefácio - A carta


Sentei e abri o computador para te escrever. Se fosse antes, pegava papel e caneta. As coisas mudam. E sei que precisaria tratar isso em terapia, mas tenho resistência por essas mudanças todas que fazem nosso mundo ficar para trás de tempos em tempos. 
Gostava do papel e da caneta. A gente se entregava mais a eles, escrevia com as mãos, com a letra que faz uma carta ser diferente da outra, colocava na tinta um pouco do que sentia ao escrever. Digitar torna tudo mais fácil e as palavras saem tão automáticas quanto apertar um enter entre uma linha e outra. 
Não gosto dos automáticos, de tudo que torna fria as relações, as mutações. Talvez por isso prefira sempre o passado, demoro tanto para assimilar cada sensação que as eternizo e vou saboreando aos poucos - como guardar a melhor parte do prato para o final e ter o gosto na boca por mais tempo. 
Tenho feito despedidas em mim. Vez ou outra me pego ocupando e desocupando meus espaços. Tenho tentado ser livre - tanto quanto sei que é preciso tentar para se desprender e deixar ir, ou vir, ou ser o que tiver de ser. E embora seja uma palavra linda, a liberdade muitas vezes se torna um sonho utópico que levaremos para o caixão. O que é ser livre? O que parece ser livre para você? O mundo é uma maquete. E eu, eu sou só uma interrogação.

E uma interrogação nasce interrogação. Aos cinco anos minha família me levava à praia com frequência. Íamos uma, duas vezes ao mês. 
Foi lá que tomei meu primeiro porre quando roubei a caipirinha do meu pai. Lá que queimei meu braço com água viva (essa marca no meu braço direito), e lá que mostrei meu talento com as perguntas. Comercial de Carnaval e queria saber o que era camisinha na frente de uma sala cheia. Minha mãe quase me matou. 
Desde então as interrogações foram surgindo. Viraram profissão, mania, confusão. Quando sofro por uma resposta, tento me conformar que nem todas que nos dão é necessariamente a verdade. Há tanta coisa disfarçada nas palavras.
Mentir. Taí, quem nunca mentiu? Quem nunca, por mais bobo que fosse, escondeu ou poupou a verdade de alguém? Todo mundo mente. Uns mais, outros menos.
A gente mente para proteger ou para denegrir. Mente que sabe tudo quando está perdido ou que não sabe nada quando não quer enxergar. E tá tudo bem, tudo certo. Se não tiver a gente mente de novo, pra nós mesmos. 
Vai mentindo até não dar mais. Até chegar na beira do penhasco, no leito do hospital, no antidepressivo tarja preta. Ou encara ou vira artista. 
Mas tá, não foi grave - você só não sabia como escapar. Mentir era o mesmo que fingir esquecer, e por ora isso pareceu tão mais fácil. E foi, pra você. Não pra mim.

Mas quem quer saber o que foi pro outro, não é?! No círculo só cabe o umbigo, e cada um que cuide do seu.
Ah essa maldita mania de querer se livrar das pessoas que te fazem pensar. Interrogações são taxadas de problemas, muito embora possam ser o início de uma exclamação nunca encontrada. É, nos enganaram que todo fim precisa de um ponto final. Por vezes ele é só o respirar para dar fôlego a mais um infindável capítulo.
Esses capítulos todos. Por vezes, várias vezes, penso em queimar as páginas. Mas sabe, cada coisa que escrevemos na porcaria da nossa história fica gravada e mesmo que a gente repasse tudo a limpo, um dia o que ficou inacabado vai martelar a nossa cabeça. Queimar as páginas não resolve, ao menos pra mim, já que já vi tanta gente fazer isso. 
Talvez fosse essa a minha busca quando bebia e ia pra pista escura dançar Joy Division. Esquecer. Esquecer que quanto mais comunicação eu estudava, mais me distanciava dela. De saber fazê-la e fazê-la dar certo. A não comunicação é o que inviabiliza a sociedade, ou o que ainda restou dela.

O que restou dela; o que restou de nós. O pouco que guardamos no fundo do baú da nossa memória tampando o pior que fomos e relembrando o melhor que queríamos ter sido. À essa altura quem te conhece de verdade já sabe, mas quem conhece a gente de verdade se nem a gente é capaz de se conhecer? 
Você nunca fez alguma coisa com que se envergonhasse, mas que gostou de ter feito? Conflito entre moral e pessoal é quando o que dizem ser certo se contrapõe com o que gostaríamos que fosse certo. O errado tão gostoso que te confunde. 
Pressões, rotina, e a sensação quase diária de querer fugir daqui, fugir dali, fugir de dentro de você. 
Mas não dá, né?! Nunca dá pra fugir da gente. Ao menos não pra sempre. Então a gente foge de parte do que incomoda. Marca um bar, uma viagem, corta o cabelo para fingir que mudou. Gasta algumas horas fazendo alguma coisa ao invés de se lamentar.
Só que tem o espelho, tem o silêncio, tem aquela hora em que ninguém te pergunta como está. Entendeu o que é automático? É a vida que segue frenética nos horários, no trânsito, no ver todo mundo todo dia e ao mesmo tempo não ver ninguém. Mas antes de ser visto pergunte a si mesmo, você, você aí dentro, vê alguém?

É tudo tão hipócrita. Se não estivéssemos todos sozinhos em meio a tanta gente não haveria epidemia de depressão. É a tal amizade de Facebook, política da boa vizinhança. Como ser lindo e feliz o tempo todo com algumas curtidas de brinde. E a vida, a vida mesmo, sem transmissão ao vivo, vai ficando pra trás.
Entre a princesa da Disney e a morta viva do Tim Burton acho que você já sabe quem eu escolheria. Já passei da fase do salto alto e nunca tive tanto os pés no chão. Sustentação.