A menina que não sabia cozinhar


_Você viu o jogo ontem? Que várzea!
_Putz, não vi. Quanto foi?
_Que espécie de “homem” é você? 
_Ah vai, não começa e conta logo como foi!
Sentados na mesa do bar, em plena Rua Augusta, a conversa certamente seria detalhada como sendo entre dois homens, mas não, não era.
Uma mulher e um homem dividiam a mesa. Ela, a mais informada, narrava em detalhes como os passes da jogada foram dados. Ele, já acostumado com os palpites “de menino” dela, confiava nos lances.
Ali não era exatamente um lugar em que fosse encontrar resistência à sua, digamos, liberdade de ser, por isso gostava tanto.
Em meio a mesas de casais homossexuais e tribos de todas as etnias, gostos e escolhas, se sentia em casa.
O estranho era que de estranha ela não tinha nada. Delicada, combinava com seu tamanho, seus gestos, suas opções. 
Branca, heterossexual – o bastante para ser encarada como ”normal” pela sociedade, embora não fosse lá muito.
No entanto, o “anormal” era, na verdade, apenas o fato de não querer ser julgada pelo que gostava ou, simplesmente não gostava.
A tal liberdade que lhe era barrada desde uma coisa tão pequena quanto não gostar de comer peixe.
_Mas, por que não?
_Porque não, oras. 
A menina que não sabia cozinhar, também não sabia lavar, passar. Também não sabia dizer os nomes dos personagens da novela, mas sabia de cor todos os jogadores da escalação do seu time, além de traduzir inenarráveis textos literários do século XIX.
_Porque lá na minha cidade... – e lá vinha com mais um discurso interiorano. De longe se via que só trazia de lá o que era bom. 
Machismo? Não, obrigada.
Não fora criada para ser dona-de-casa exemplar, mas a mulher exemplar. E hoje, após tantas discussões com seu pai, percebia que muito do que era devia ao autoritarismo dele, por incrível que pareça.
Não porque aceitava seus mandos e desmandos – aliás, justamente por nunca ter aceito. Justamente por sempre ter se questionado quanto às posições que tinha como exemplo em casa, havia nela não algo de sua mãe, mas seu inverso. 
Havia nela algo de seu pai.
_Acha mesmo que pareço com ele? – perguntava ao amigo.
_Claro, vocês são iguais!
_Não sou machista!
_Não, é feminista!
E assim ela se descobria. Conversa aqui, conversa ali, cerveja aqui, cerveja ali, ia aos poucos saboreando seu próprio sabor. Sabendo que não precisava ser homem para gostar de beber, de entender sobre futebol, de discutir sobre política e religião.
Não precisava deixar de ser mulher, também, e poderia continuar gostando de se maquiar, de andar feito boneca, de rodopiar com o ballet.
Poderia ser, por que não, um pouco dos dois. Um pouco do mundo vasto e cheio de peculiaridades que existe lá fora, por mais que muita gente ainda prefira não enxergar.