Sem dono


Esperou um mês todinho por aquele sábado, ansiosa. Acordou sem despertador, tomou yakult sozinha e foi assistir Pica-Pau nas Cataratas enquanto o pai não voltava. As horas demoravam a passar, mas, enfim, ouviu o barulho do carro. Saiu correndo pela casa. 
Ele colocou a caixa no chão. Dentro dela, um pequeno filhote, peludo, encolhido e assustado, a observava.
_ É, é meu? - disse a menina, trêmula de alegria.
_ Sim, filha, seu primeiro cachorro!
Pelos negros, focinho achatado, patas grandes, orelhas baixas, olhar de quem caiu da mudança - esse era Glomer (inspirado no amigo da Punky), que por dez anos a acompanhou com atenção. 
Habilidoso, aprendeu a fazer xixi no lugar certo, comer tudo no potinho azul, tomar água quando chegava do passeio, dar a patinha. Aprendeu muitas coisas, mas ensinou a mais importante delas: ter sem possuir.
Glomer nunca foi dela, como disse-lhe o pai. Com a liberdade que só os animais são capazes de ter, nunca precisou ser aprovado, seguir regras sociais, ganhar posições ou bens. 
Nunca ligou se ela estava feia com o cabelo despenteado, se lia dois livros ao mesmo tempo ou se estava na tpm. Ele só queria o que ela podia dar, ainda que isso significasse uma horinha de seu longo dia.
E mesmo depois de tantos anos, de tantos outros, continua nas recordações infantis da menina que hoje é mulher. Vivo em seus melhores momentos, Glomer foi o despertar de um amor encaixotado que, embora dependente, trouxe consigo a liberdade de ser feliz ali, no momento que se tem, seja uma hora, um dia, um instante. Sem paradigmas, sem conceitos, sem dono.