Tudo o que João tinha era seu cobertor. Presente de um bondoso senhor, era ele que lhe protegia do frio do inverno e dos olhares curiosos. Dias de chuva eram seus piores pesadelos, vagava então pela cidade à procura de um telhado para escapar das gotas frias. Abrigo? Não, obrigado. João tinha medo de perder seu cobertor.
Quarenta e poucos anos de uma vida de desperdício. Bebendo para amenizar as amarguras que trazia na alma, desperdiçava sua juventude, sua força e sua saúde. Ele estava debilitado, mas seus pensamentos não.
Sonhava em um dia ter uma terrinha - vontade que conservava desde a infância, quando migrou do sertão para São Paulo. Antes, ganhava a vida como pedreiro e sabia construir ou reformar como poucos, mas seu mal, como sua ex-mulher costumava dizer, era a bebida. Por ela ficou sem casa, sem esposa, sem filhos, sem emprego. Por ela ficou sem dignidade.
Porém, havia nesse homem algo de sagrado. Mesmo sem ter o que comer por muitos dias, alimentava-se da fidelidade de suas duas companheiras. Alegria e Tristeza eram as cadelas que o acompanhavam em sua aventura diária. Ambas não tinham tido muita sorte na vida, como João. Mas amor, ah, esse não lhes faltava.
Toda semana lavava a calçada do açougue em troca de ossos e carne de segunda, sendo recompensado por lambidas carinhosas. E foi em nome desse amor que João, com muito pesar, perdeu seu único cobertor. Alegria havia sido atropelada e no desespero de seu socorro, o pobre João perdeu seu manto para outro mendigo. Brigar? Não, ele não era de briga, ainda mais com aquele homem robusto que o furtara.
Agora sem nada, João do Cobertor (como era conhecido), possuía apenas seus sentimentos para lhe aquecer. Tinha também, guardado dentro de si - onde ninguém poderia roubar - um bocado de esperança, que junto à sua pequena cachorra Alegria lhe conduziam para frente, enquanto a Tristeza tratava de lembrá-lo dos dias difíceis, mas não menos importantes na construção e finalização de sua história.