É de memória que a vida se faz. Passado, presente e futuro se misturam, virando uma coisa só. Sou resultado de todas as minhas marcas e cicatrizes. Essa é a minha história e isso aqui não passa de uma lembrança. Mais uma.
(...)
Senti na ponta da língua o gosto salgado da lágrima. Meus olhos se confundiram entre verde e azul, destacando-se em uma pele que se transformara de branca em vermelha. Meus cabelos presos se desprenderam sozinhos, envoltos a uma gola rolê que cobria meus ombros nus. Era uma segunda-feira fria de uma triste e inesquecível semana.
Conforme meus passos se adiantavam, mais e mais placas ficavam para trás. Ao meu lado, um homem quase desconhecido tentava me dizer palavras de conforto.
_A vida é assim!
E eu, inerte em meus muitos pensamentos, me perguntava em como poderíamos viver uma vida sem sentido.
_Temos que voltar! - foi a única frase que disse aquele dia.
A pequena urna branca ainda estava aberta. Minha mãe e irmãs velavam um anjo. Nosso anjo de gênio forte, atitudes ferozes e alegria doce.
E ele ali, firme. Não chorou, não temeu, não se desfez aos pedaços como a gente - meu pai.
Coroas de flores, não sei pra quê elas existem. Talvez para indicar quem tem mais chances de ser decorado quando não resta mais nada. E elas chegavam aos montes.
Hoje quando vejo aquela grama, as lembranças me fogem. Só lembro do frio que senti e que ainda sinto. Anjos também se vão.
E eu queria tanto que ela ainda estivesse aqui - ou quem sabe talvez esteja. Porque há presença na solidão.
A presença dos anjos que nos faltam, ou de nós mesmos, porque gostar da nossa própria companhia é como se ver envolta por eles.
Foi aí que aprendi a rezar. Rezar sem palavras, sem frases decoradas. Rezar com o silêncio, com a voz que calo para não parecer louca.
Louco porém, é o conforto que se encontra. Chega um tempo em que a dor se transforma em repouso e o repouso se transforma em lembrança.
Lembrança de uma criança que aguentou o peso sem reclamar. E a ela é quem dedico todo meu esforço, porque sei que ela faria melhor, mas sei também que é ela quem me ajuda a tentar melhorar.
(...)
Nossa história é nossa identidade, e ela não é nada além de um livro que escrevemos. Não devemos esquecer nossos capítulos, recheados de erros e acertos. Temos ainda a possibilidade de consertar muita coisa até chegar a última página.
"Ainda estão rolando os dados"