Boneca de pano


Cabelo de nylon loiro, olhos azuis pintados a tinta, como todo o rosto. Mãos, braços e corpo em tecido, mais precisamente, pedaços de pano não utilizados. Vestido florido rosa e tamanho que cabe na palma das mãos. Essa é Alice, minha primeira boneca.
Na verdade, não exatamente a primeira, pois a progenitora das bonecas foi Maria Gasolina (nome dado pelo esquecimento da mesma no porta malas do carro e consequente aroma futuro). Mas, Alice foi a primeira a quem me dediquei, carreguei, dormi, dei colo.
Ela não nasceu de fábricas enormes com cheiro de plástico, nem tampouco dos ateliês coloridos de artesanato de Embu das Artes. Ela foi gerada por mãos mais simples, meigas e fortes - as da minha avó materna.
E dentro da barriga, Alice trazia um segredo: uma bolinha curiosa a qual nunca descobri a natureza e o motivo de estar ali. Talvez minha avó tenha colocado a propósito para incentivar minha curiosidade nata, ou quem sabe, um descuido na hora da costura final. O fato era que a boneca tinha a tal bolinha e essa me fascinava.
Mais que o pônei novinho cheirando chiclet, com a carroagem perfeita e brilhante que ganhara de Dia das Crianças, ela tomava um especial lugar no quarto e em mim, sendo guardada até a metade da metade de um século.
O que importava não era do que Alice era feita. De pano, borracha, plástico, papel. O que importava era que Alice fora confeccionada pela avó mais doce do mundo.
Às vezes, os sentimentos são pedaços de pano remendados que tomam a mais pura beleza quando juntados com boa intenção. São partes de histórias distintas que compõem a construção de uma coisa só, mesclada por cores, gostos, cheiros e lembranças.
Alice é a junção dos meus sonhos de criança aos delírios de uma mulher que ainda quer desvendar os segredos, da boneca e de si mesma. A bolinha na barriga hoje parece mais a admiração pela maternidade e a esperança de que reconheçam em seus olhos a velha simpatia pela delicadeza de uma boneca de pano.