Sapatilhas empoeiradas


Calor. Corpo imerso em um infindável banho. Banho de água, de pensamentos - passado, presente e futuro.
Cabelo enrolado na toalha, rosto sem maquiagem, pele molhada. Quarto detalhadamente organizado, cds por ordem alfabética, livros por autores, porta-retratos.
Na cabeceira, a bailarina de cristal. 
Nua, cobriu-se de luz. 
Ligou o rádio e foi conduzida por Chico Buarque. Na escrivaninha, o café ajudava nas horas a fio que passaria escrevendo. Palavras se formavam em linhas e mais linhas de um texto imaginário que tocava seu peito como as teclas de um piano.
Observou o arquivo em branco sem saber. Dose, uma boa dose de domínio.
Confessava em silêncio, no entanto, que por vezes não quis mais se controlar. 
Poderia ser pior, ou melhor. 
Poderia.
Respeitem suas vontades - costumava dizer às atentas crianças vestidas de rosa.
Lembrou da caixa de bilhetes. Abriu o guarda-roupas e, estava ali. Leu cada um dos pedaços de papel com olhos brilhantes. A cada cartão, mais saudade do collant preto e das sapatilhas empoeiradas.
Recordou a primeira vez que subiu nas pontas. Sorriu.
Naquela noite decidiu não escrever. Decidiu não pensar. 
Inclinou os pequenos pés, fechou os olhos, entregando-se à irresistível dança de seus sonhos.
(...)