Vestia-se do tempo


Debruçou sobre a janela.
Vestia-se de bruma.
Treze de outubro.
Vestia-se de imagens.
Contemplou a neve.
Ergueu-se ali uma recordação.
Não soube fugir do passado, e saboreou tudo de novo, com o mesmo cheiro, o mesmo gosto.
Caía em Dublin uma fina garoa - navegou no mar do tempo.
Não se sabe quando é hora de voltar pra casa - mas sempre se sabe a hora de ir embora.
Resolveu sair.
Abotoou o casaco, vestiu as botas e pegou uma garrafa de vinho. Sentou-se à beira do poço, de onde pudesse observar a água congelada.
Logo o sol a derreteria e deixaria de ser gelo - mas a lembrança da rigidez para sempre estaria ali.
Marcas.
Sorriu. Por prazer, por ardor. Pela experiência de tê-las e pela alegria de superá-las. Pela beleza de se tornar mulher sendo infantil.
Há de se tocar a fundo o sentido daquilo que se vive com paixão.
Olhos cor de mel - agradecia por ter lhe tornado tanto quando se sentia tão nada.
Som. Música a seus ouvidos. Silêncio. Voz da intuição.
A arte de saber ver - os olhos que fechamos, as frases que calamos, os medos que cultivamos.
O culto inegável de não ter, crendo. Crendo que não quer, que não sente falta.
Crer para não vencer - e se render.
Vender a verdade que no fundo, não se acredita.
Mas tudo é secundário quando se sabe fingir.
A alegria dos tempos que não voltam trazem a dor de saber que foi real.
E mais fácil seria ignorar o amor, fazendo valer a premissa de contemplar o que é certo.
Porquanto seu gostar me parece tão errado.
Calada, tomou quase toda garrafa. Com dormência necessária para a coragem que lhe faltava, arriscou-se em uma meia-ponta, sentindo saudade da leveza dos tempos de criança.
A lua - grande lua - atrasava o ponteiro dos relógios na ânsia de vê-la dançar.
Com delicadeza e magia, adormeceu como um anjo que se entrega ao deconhecido, encoberta por flores lilás, vindas da árvore que a abrigava.
O sonho, quando guardado, enraiza e floresce - fazendo existir no coração a certeza da mútua importância.
Que esta noite seja eterna na beleza de termos sentido - pele, poros, olhar, toque e vício.